













Os Arcade Fire estão de volta a Portugal. Há dois anos, no Rock in Rio-Lisboa, foi assim
26.01.2016 às 12h27
A banda canadiana foi hoje confirmada no NOS Alive. Ainda se lembra do concerto arrebatador de 2014, no Parque da Bela Vista?
Se a memória não nos atraiçoa, quando os Arcade Fire pisaram pela primeira vez solo português estavam já em estado de graça: nesse longínquo verão de 2005, em Paredes de Coura, já toda a gente sabia que Funeral, editado em setembro do ano anterior, não era mais um disco de uma banda indie à procura de ser grande - era a banda sonora capaz de pintar o cenário de um pedaço de vida. As voltas e os mistérios de Funeral eram tão singulares que a nação alternativa não esperou para adotá-lo como disco de estimação, o primeiro clássico do pós-novo rock (Strokes, White Stripes), o primeiro conjunto de canções isento de inscrição numa "cena" da década dos 00. Funeral era Arcade Fire e os Arcade Fire eram os Arcade Fire - não era uma banda tipo qualquer coisa.
Quase nove anos depois, vê-los no mais amplo palco do Rock in Rio-Lisboa obriga-nos a um esforço de retrospetiva. Como é que uma banda de estimação de uma fação desalinhada com o rock de massas acaba a tocar na catedral do rock (ou da pop, concedemos) de massas? A resposta é relativamente simples, mas explica o complicado: porque soube manter os fãs que já tinha, angariando muitos mais. E isso só se consegue, salvo melhor explicação, de duas maneiras: aproximando-se das massas ou levando as massas a aproximar-se de si. Não será estranho que os Arcade Fire tenham feito as duas coisas e, com isso, dotando o seu percurso de uma aura de credibilidade bem difícil de almejar. Quem ouve Reflektor, ambicioso duplo álbum lançado no final de 2013 e repositório de rock, pop electrónica, temperada por pós de dub, dancehall e ritmos do caribe, não sente que a banda dos épicos elétricos de Funeral mudou de negócio. Quem só aparece agora, a reboque da verve recente, não vai achar que o passado distante de Win Butler e companhia era mobília tosca a precisar de acabamentos.
Entre um e outro álbum, entre o primeiro concerto entre nós e o desta noite, houve mais discos, mais concertos, inflexões mais suaves ou pronunciadas, beijos na cara do indie ou piscares de olho ao mainstream mais cintilante. Nesse sentido, os Arcade Fire são, ainda, uma banda à moda antiga: o showbusiness não exclui aventura, o "make believe" não é uma farsa; é ele próprio uma razão de existência. A dúzia de almas que vemos em palco a trocar constantemente de instrumento e de posição parece, grosso modo, uma banda de casino embriagada a tocar no jardim de verão do palácio. Vestidos para a festa, com fatos reluzentes e uma solenidade algo cómica, os Arcade Fire rapidamente se ensopam em transpiração e, solenidade da farpela à parte, entregam-se abnegadamente à missão de dar espetáculo. Fazem-no como se estivessem treinados para a liga dos campeões desde o tempo em que andavam nos campeonatos regionais. Secção de metais e umas mãos extra na percussão acrescentam-se à formação habitual, onde se destacam naturalmente Win Butler (voz, guitarra, piano, chefe de orquestra), Régine Chassagne (voz, uma data de instrumentos) e Richard Reed Parry (teclados, percussão, ruivo mestre de cerimónias, etc). Note-se o retorno à casa de Sarah Neufeld, violinista que por altura da edição Reflektor saíra para lavrar um disco a solo.
É com o noturno tema-título, electro épico para flashes contínuos, que o concerto desta noite abre. "Flashbulb Eyes", também do álbum de 2013, segue-se sem pausa. A generosidade na abordagem a Funeral começou logo a seguir (por outro lado, quase nada foi tocado de Neon Bible, um segundo álbum a que falta o brilhantismo do primeiro): "Neighborhood #3 (Power Out)" suscitaria os primeiros coros da noite, palavras gritadas para o céu a espantar espíritos. Colada a esta, "Rebellion (Lies)", mais épico, mais excitado, mais alto, mais tudo. Plateia ganha num instante. Depois de um "Rococo" morninho (pior canção dos Arcade Fire?), uma canção "sobre a saudade" (Win Butler dixit), "The Suburbs" - o vocalista ao piano, Régine atrás da bateria, sorridente. Falha-se o arranque de "Month of May" por duas vezes e uma versão curta, quase "a capella", de "My Body Is a Cage" resolve o impasse. "Month of May" ficaria para outras núpcias porque da cartola saem mais dois coelhos: "Neighborhood #1 (Tunnels)", canção nervosa, turbilhão pronto a explodir (mais um coro redentor) e "No Cars Go", cavalgada imperial a terminar em triunfo, um estado êxtase que provavelmente só os Arcade Fire conseguem repetir, sem perda de emoção, ao longo de quase duas horas.
Dança-se com "Haïti", há ginga de "Billie Jean" em "We Exist" (o novo single), um homem vestido de espelhos (refletor, claro) assoma na plateia em "Afterlife", ataca-se território funk com "It's Never Over (Oh Orpheus)", aqui com Régine numa plataforma a alguns metros do palco, assombrada por um esqueleto, a alternar o protagonismo com o marido. Estridente, mas afinada, a vocalista interpreta depois uma emocionante "Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)" que parece irmanada com "Heart of Glass", dos Blondie. O momento mais rock desbragado dá-se com "Normal Person", riffalhada que arde (lembra "Addicted to Love", de Robert Palmer) e cabeças a abanar para cima e para baixo numa plateia que nunca saiu da rede de enlevo montada pela banda canadiana. Vemos agora os gigantones de Reflektor sobre o palco, subitamente mais populoso. "Here Comes The Night Time", canção de dois balanços, é outro pico do concerto, num momento arrebatada e dramática, noutra divertida e descomprimida (e há quem jure ter visto Lorde em palco neste momento) e foi depois de uma chuva de confetes que o desenlace se deu, ao som de uma "Wake Up" ainda lá mais em cima de tudo (continua uma delícia aquele final à "Lust for Life", de Iggy Pop), coros disparados para um céu limpo de primavera, fantasia de concerto rock plenamente cumprida, "esta banda ainda é o que era". Sai-se daqui muito bem tratado.
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